Artigo – O notário nas ordenações filipinas – Por Andre Ribeiro Jeremias
23/08/2023-
- Objeto do trabalho
Esta produção aborda a função notarial no contexto das Ordenações Filipinas.
- Relevância do tema
(1) As Ordenações Filipinas. As Ordenações Filipinas vigoraram no Brasil até a entrada em vigor do Código Civil. Suas disposições sobre a matéria em estudo serviram de inspiração para o ordenamento jurídico que a sucedeu, conforme veremos.
(2) A função notarial. Já a função notarial tem a importância de ser um dos principais vetores da realização espontânea do Direito. Ganha relevo especial em culturas jurídicas de tradição romano-germânica, em que se desenvolveu o modelo notarial latino, presente em países como França, Alemanha, Itália e todos os países da América do Sul.
Nestes locais, o notário não é um amanuense, um copista; mas um cientista do Direito, cuja missão é promover a paz através da disseminação não-contenciosa de valores jurídicos. Para se desincumbir de sua tarefa, o notário ouve as partes e produz uma fórmula que lhes garante o alcance de seus objetivos.
- Abordagem da matéria
A fim de que exista a correta compreensão do fenômeno notarial e da transmissão imobiliária na época das Ordenações Filipinas, entendemos ser útil estabelecer conceitos atinentes à época e ao diploma normativo de que tratamos.
Dessa maneira, evitaremos precipitações e retroprojeções indesejadas, que poluem a compreensão de circunstâncias históricas.
Em seguida, analisaremos algumas regras que norteavam o exercício da profissão do notário, regras formais de execução das escrituras, a escritura como instrumento probatório e dois instrumentos de grande importância social: a escritura de venda e compra e o testamento.
Parte 1. Contexto e teor das Ordenações Filipinas
- A cultura jurídica em Portugal
No início do século XVII – período da entrada em vigor das Ordenações Filipinas -, em Portugal, o direito culto, praticado por países como a França, preenchia a necessidade de regulação em matérias como contratos, direito das coisas etc1, vez que o direito nacional lidava predominantemente de temas como relações entre poderes, organização dos serviços públicos etc.
Na medida em que os estudantes e os aplicadores do Direito recebiam influências do Direito romano e canônico, afastavam-se das soluções do direito nacional, razão pela qual a literatura suplanta a lei em importância na tarefa de conhecer o direito pré-moderno vigente em Portugal.2
- O modelo de organização política
(1) Modelo senhorial. O modelo de organização política era senhorial, não feudal, eis que os vassalos portavam deveres gerais de fidelidade, que não apontavam necessariamente para a execução de serviços específicos.3 Além disso, em contraste ao conteúdo desta relação no regime feudal, o donatário exercia a jurisdição em nome do rei, que, assim, poderia revogá-la.4 Por fim, outro ponto de distinção entre o modelo senhorial e o feudal reside no fato de as doações senhoriais carecerem de confirmação periódica. No momento desta ratificação, o rei reavaliava a fidelidade do senhor a ele5.
(2) Amplitude dos poderes. Em que pese a amplitude de poderes restrita, se comparada com a época feudal, os recebedores do senhorio detinham o domínio da jurisdição (dizer o direito) e do império (uso da força)6. Além destes poderes, podiam, conforme o caso, dispor também das << regalias >>, que eram direitos reais sobre bens da coroa (também chamados << Reguengos >>)7.
Tais direitos eram muito variados. Dentre eles, a título de observação, podemos citar: a criação de magistrados e oficiais, a autorização de duelos, a cunhagem de moeda etc8.
Estas regalias seguiam a regra da especificidade dos direitos reais. Por essa razão, uma doação de propriedade em termos gerais, sem especificação de poderes, não incluía todos os possíveis. Por exemplo, uma doação de mero império (uso da força em benefício público) não incluía o misto império (uso da força em benefício particular)9.
Com relação à terra, a propriedade sobre ela era, via de regra, vitalícia, indivisível e passava ao primogênito.10
- A estruturação da Justiça
Os Concelhos traduziam-se nas comunidades locais que legislavam sobre diversas questões que não constituíssem regalias – matérias reservadas ao rei.11 Outra função destes órgãos era a jurisdição, exercida em maioria por um ou mais magistrados leigos de eleição popular. Tais pessoas, que não tinham carreira, compartilhavam a função com juízes técnicos e estatais, chamados << de fora >>.
Os Concelhos abrigavam também os vereadores. Assim como os magistrados, eram eleitos a partir de uma lista elaborada por 6 pessoas escolhidas pela elite. Aqueles mais encontradiços para a << pauta >>. A partir daí, sucedia o sorteio com << pelouros >> (bolinhas de cera com o nome do candidato).12
Sem embargo da autonomia na cobrança de tributos, os Concelhos subordinavam-se ao Desembargo do Paço, formado por corregedores, os quais fiscalizavam o cumprimento da lei, com o que promoviam a união dos sistemas locais com a Coroa.13
Essa atividade de encadeamento do poder local com o central também era executada pelo Alcaide.14
Fechando o sistema de administração da justiça, havia a Casa da Suplicação: o tribunal superior do Reino que acompanhava a Corte. Seus membros encarregavam-se de produzir assentos, ou seja, interpretações do Regedor ou do Rei, produzidas para espancar dúvidas dos desembargadores.
- O direito local
Como dito acima, os Concelhos produziam o direito local (estatutos, posturas, costumes ou foros), que abarcava leis civis, criminais, políticas, administrativas e processuais relevantes ao governo e à vida do município.15
Levando em conta esse corpo legislativo local, havia uma expectativa de que a Coroa o respeitasse. Dessa forma, o corregedor não podia revogar a lei, mas apenas o Rei, se e quando ela provocasse prejuízo ao povo.16
Apensar da autonomia local, certas matérias não podiam ser reguladas por leis municipais: tributos, leis gerais e direitos já concedidos. 17
- As Ordenações
(1) Compreensão geral. As ordenações consistiram em empreendimento de sistematização precursor na Europa.18
Dentre suas causas estão os pedidos feitos em cortes por uma coletânea do direito vigente, que refreasse desordens produzidas pela dispersão de normas.19 Com efeito, o mosaico de referências normativas (forais, direito romano, canônico, leis régias etc) ensanchava dúvidas e contentas.20
Embora tal consideração genérica seja verdadeira, também o é que cada ordenação teve motivações particulares.
(2) Ordenações Afonsinas. A intenção das Ordenações Afonsinas foi atualizar e sistematizar o Direito. Seu estilo principal é compilatório: cita a fonte na íntegra e, depois, informa como ela deve ser entendida.21
Estas ordenações colocavam no mesmo plano as leis do reino e os costumes, ambas consideradas fontes imediatas. Apenas se não fosse possível que elas resolvessem a questão, recorria-se ao direito subsidiário.
Aí, em primeiro plano, ficavam o Direito Romano e o Canônico. Em questões de natureza temporal, usava-se o primeiro, a não ser que de sua utilização resultasse pecado (“ratio peccati”). Um exemplo disso era a usucapião de má-fé, não admitida pelo direito canônico, apesar de a questão ter natureza temporal. Depois, aplicavam-se as glosas de Acúrsio e as opiniões de Bártolo. Em seguida, como terceira fonte, a resolução do Monarca.22
(3) Ordenações Manuelinas. As Ordenações Manuelinas derivaram da vaidade do monarca e da necessidade de unificar o direito sob a linha do Direito Romano, contrariando o poder emergente dos foraes, que retratava o poder disperso dos senhores.23
Elas adotaram como estilo principal o decretório, em que já se fazia um esforço de abstração.24 Em outras palavras, diferentemente das Afonsinas, não eram mera compilação de leis (registro prático para a aplicação do direito vigente), mas refletiam um avanço no destilo decretório, dando ao seu teor um cunho mais hipotético.25
(4) Ordenações Filipinas. No plano econômico, Portugal passou, de 1495 a 1750, por um período de estabilização do Estado, em que a expansão ultramarina enriqueceu a coroa.26 No cenário político, os Filipes eram reis de Portugal ao mesmo tempo em que os eram da Espanha. Todavia, comprometeram-se a não anexar os dois reinos, razão pela qual a união entre eles foi pessoal, ou seja, havia um rei com dois tronos27.
No plano jurídico, após um período de codificação (consistente nas Ordenações Manuelinas), sobreveio uma copiosa legislação extravagante, que se avolumou, fazendo surgir o anseio por uma nova compilação.28
Além disso, os reis espanhóis quiseram – com as Ordenações Filipinas – demonstrar respeito às instituições portuguesas e empenho em atualizá-las dentro da tradição jurídica do país. 29
O texto ficou pronto em 1595, mas somente no reinado de Filipe II, em 11 de janeiro de 1603, iniciou-se a vigência, a mais duradoura de um diploma legislativo português. No Brasil, vigorou até 1916, com o Código Civil. Em Portugal, até o Código Civil de 1867.30
Vale notar que o artigo 83 da Constituição Brasileira da República manteve as Ordenações Filipinas em vigor, porém dispôs que onde fossem incompatíveis com a cultura jurídica nacional brasileira (morte civil, distinção entre filhos de nobre e de peão etc), estavam implicitamente revogadas.31
Em sua estrutura, continuou a divisão em cinco livros, subdivididos em títulos e parágrafos. Não há diferenças fundamentais quanto ao conteúdo dos livros, visto que a preocupação foi revisar e atualizar as Ordenações Manuelinas.32 Tratou da nacionalidade pela primeira vez.33 Revogou todas as normas legais não incluídas na compilação, com poucas exceções.34
Como dito, o propósito do monarca não era inovar, razão pela qual muitas disposições em desuso não foram extirpadas; e houve aditamentos de novas disposições que colidiam com antigas e diversos trechos com falta de clareza. Por esses motivos, a expressão << filipismo >> passou a ser usada pela população para designar << falta de originalidade >>.35
A primeira edição brasileira datou de 1870 e correspondeu à 14ª tiragem em Portugal.36
Nas Ordenações Filipinas, o problema da subsidiariedade do direito passou a ser tratado no << Processo >>, pois deixou de ser um problema moral entre Igreja e Estado e tornou-se uma questão meramente técnica.37
Ainda existia no âmbito de aplicação do direito subsidiário o requisito do pecado. Porém, no que diz respeito às glosas de Acúrsio e às opiniões de Bártolo, havia a necessidade de que tais fontes passassem pelo crivo da << comum opinião dos doutores >> antes de serem utilizadas na disputa.38
Confira aqui a íntegra do artigo.
Fonte: Migalhas